Pensa Tudo!: Suassuna, "O Matuto Intelectual"

5 de agosto de 2014

Suassuna, "O Matuto Intelectual"



Não dá para falar da obra de Suassuna sem falar do homem Ariano. Nem é possível tentar entender o homem Suassuna sem pensar na obra de Ariano. Tudo está misturado, como nos seus livros, em suas palestras, em suas aulas magnas, às quais sempre o acompanhava Zélia, sua companheira por mais de 60 anos. Aliás era assim mesmo que ele começava. Contando uma história pessoal, comentando um detalhe qualquer, para três minutos depois ter magnetizado a plateia.


Suassuna foi romancista, dramaturgo, poeta, ensaísta e professor universitário. Ocupou durante décadas a cátedra de Estética na Universidade Federal de Pernambuco e chegou ao posto máximo, aposentando-se como Professor Titular. Apesar do cargo e da vasta erudição, jamais portou-se (coisa rara) como um intelectual encerrado no mundo acadêmico. Aliás, não frequentava nem a Academia Brasileira de Letras, para a qual fora eleito em 1989: “O quê que vocês querem que eu vá fazer lá? Só tem gente feia e velha. Ali, somando a idade de três ou quatro acadêmicos, brincando dá mais que a idade do Brasil.” Como conta seu amigo Hermilo Borba Filho, detestava televisão, rádio, telefone, internet, avião (“coisas do demônio”), não comparecia a reuniões oficiais, jantares e coquetéis, mas podia virar a noite num bate-papo ou ouvindo repentistas.


Suassuna gostava de dizer que a função do artista é “espalhar contradições”. Provocar e mostrar que na arte, como na vida, não existe pureza. Dizia, por exemplo, que quando a pintura abandonou o figurativo, enveredou por um beco sem saída. Mondrian via o mundo como uma sequência de retângulos. Malevitch negava a cor. “Isso, a meu ver, foi mortal para arte, porque ela começou a se isolar”.
Não simpatizava também com a distinção entre espaço e tempo promovida pela filosofia kantiana: “Eu não gosto de Kant. Ele dizia que nós não podemos afirmar a realidade exterior, que aquele jasmineiro é uma coisa para mim, outra para você, outra para ele. Mais do que isso, ele acreditava que eu nem sequer posso provar que a imagem que eu tenho corresponde ao real. (…) É muito fácil você discutir se aquele jasmineiro, se a imagem daquele jasmineiro, corresponde ou não ao real. O jasmineiro está quieto, no canto dele. Mas eu queria ver se fosse uma onça que entrasse aqui, queria ver se o Kant iria perguntar se por acaso se tratava de uma correspondência com o real”.
Assim era o discurso de Suassuna, contra o intelectualismo oco, uma voz de matuto que filosofava com a erudição da academia. E embora admitisse a importância da contradição, sua vida e sua arte constituem um dos raros exemplos de absoluta coerência ideológica na história da inteligência brasileira. Ele nunca escondeu sua radicalidade, nunca deixou-se inibir por qualquer crítica, jamais fez concessões a modismos estéticos e sempre manteve-se afastado das panelinhas acadêmicas e intelectuais.


A tônica do discurso de Suassuna é a defesa da cultura popular e sua obra é a assimilação erudita dessa cultura, como o fez Villa-Lobos com a música. Em 1967, vinte anos após a publicação de seu primeiro livro, a tragédia UMA MULHER VESTIDA DE SOL, ele fundou o Teatro Popular do Nordeste, que se tornaria, em 1970, o Movimento Armorial. O objetivo era “revisitar símbolos, sons e manifestações artísticas da tradição ibérica retomadas pela cultura popular brasileira, especialmente a nordestina”. Cantigas, composições de mote e glosa, romanceiros, autos, cantadores, violeiros, cordel, circo, iluminuras, gravuras, teatro de bonecos serão algumas das expressões artísticas fundidas em sua obra. O Movimento congregava artistas vivos que estivessem ainda produzindo suas obras e acolhia, além de escritores, poetas e dramaturgos, artistas das mais diferentes artes, como gravadores, ceramistas, músicos e bonequeiros.
Não se deve confundir, no entanto, a valorização desses elementos de cultura popular com o regionalismo. Ariano nunca aceitou a etiqueta regionalista para sua obra. Defendeu a importância das raízes ibéricas na cultura nordestina e o universalismo de ambas. A professora e pesquisadora francesa Idelette Muzart Fonseca dos Santos, num estudo intitulado “O decifrador de brasilidades”, sintetiza com clareza a proposta de Ariano:
“(…) A relação com a cultura oral e popular nordestina, em vez de limitar a obra de Suassuna a um regionalismo ou nacionalismo estreito, incentiva a uma viagem dentro das culturas brasileiras e universais: a forma dos autos populares e uma etnocenologia AVANT LA LETTRE remetem para os instrumentos da catequese do período dito colonial, que, por sua vez, articulam práticas medievais e tradições judaicas e árabes. No Nordeste, espaço onde se criou, na fórmula de Darcy Ribeiro, a matriz étnico-cultural original que garantiu, através dos últimos dois séculos, a coerência da identidade brasileira, a transmissão oral funda uma ‘memória longa’ que ultrapassa os limites da cronologia brasileira. O nacionalismo afirmado de Suassuna apresenta-se então como uma busca da diferença, da multiplicidade cultural, e jamais como exaltação unanimista e nostálgica.”


Ariano vivia desde 1959 num casarão de pé direito altíssimo construído em 1870, com móveis de madeira, ladrilhos hidráulicos e paredes forradas de quadros de temas populares. No amplo terreno, construiu a casa para três de seus seis filhos, dois dos quais são artistas plásticos. Escrevia e compunha suas iluminogravuras numa escrivaninha de estilo escolar acomodada de frente para uma porta balcão banhada de sol. Vestia-se de maneira simples, preferencialmente branco ou vermelho (ou rubro, como preferia dizer) e negro, porém elegante. Sua magreza e elevada estatura contrastavam com um olhar atravessado de sinceridade.
Sua casa era um oásis da mais autêntica arquitetura colonial brasileira num Recife sufocado, como todas as cidades do Brasil, pela cafonice de uma pseudoarquitetura americanizada. Seu modo de falar era o de um matuto cuja sabedoria não soava nunca arrogante. Sua voz exalava cordialidade. Mas que ninguém ousasse defender o “gosto médio”, o aburguesamento de uma leitura do mundo pasteurizada no engessamento de fórmulas prontas, sejam elas artísticas, ideológicas ou políticas: “(…) O camarada pode ter um péssimo caráter e ser um grande artista; pode ser um excelente caráter e um péssimo artista”.
Vivemos num mundo em que a maioria das pessoas é dominada pelos ditames do consumo e imaginam, assim, que o planeta seria perfeito se ele pudesse se transformar numa gigantesca Disneylândia ou num shopping center. Somos domesticados pelo discurso publicitário e nossas escolhas são ilusórias, pois “escolhemos” dentro de um menu previamente estabelecido e sob a enganosa diversidade das opções repetimos apenas uma variante do mesmo. Assim acontece com os produtos da indústria do entretenimento: filmes hollywoodianos, livros best sellers, GAMES eletrônicos, imagens e mensagens prontas veiculadas na internet, missas-show, manuais de psicologia, de filosofia, de como fazer amigos. E, last but no least, os horrendos pacotes turísticos oferecidos na forma de cruzeiros (com shows a bordo), trilhas ecológicas (sem esquecer o celular e o ipod em casa), praias desertas (com internet hifi), chalé nas montanhas (com TV a cabo).
Essa disneylização ou shopinterização dos espaços públicos fazem as pessoas abdicarem de sua inteligência e infantilizarem suas vidas. A percepção da realidade é reduzida então há um conjunto de representações que falseiam a própria realidade, as falas e os gestos são tomados por um artificialismo que pasteuriza as diferenças, apaga os limites entre sujeito e objeto e legitima o ilegítimo discurso do poder hegemônico. O mundo torna-se para essas pessoas (com a permissão do Suassuna para empregar o termo) “fake”, reduz-se a um parque de diversões em que os que estão dentro (leia-se: os que têm os recursos econômicos para usufruir desse faz-de-conta) se regalam e se exibem; e os que estão fora fazem o possível e o impossível para serem admitidos nesse parque.


A vida e a obra de Ariano Suassuna são um NÃO contra essa falta de autenticidade que se manifesta por uma planetarização do modo de vida (e de consumo) da sociedade norte-americana (remeto o leitor aos documentários GUIA PERVERTIDO DA IDEOLOGIA e GUIA PERVERTIDO DO CINEMA, ambos conduzidos por Slavoi Zizek). Suassuna sempre atacou frontalmente, por exemplo, o cinema hollywoodiano, os best sellers e a música pop americana. Numa entrevista concedida ao Diário de Natal, em 2000, declarou: “Elvis Presley é um idiota”. Em outra ocasião, numa palestra, ele disparou: “Acho a Madonna e o Michael Jackson simplesmente um horror. O gosto médio é pior que o mau gosto”.
A frase pode soar exagerada ou, talvez, como frase de efeito. A música de Jackson, pelo menos ritmicamente falando, é irresistível. Mas o que dizer quando pensamos nas letras de suas canções e no visual de seus clipes? Penso, por exemplo, no clipe de “Thriller”. O que dizer daquele besteirol de cadáveres levantando-se das tumbas com presas de felinos de grande porte, daquelas roupas-the-day-after ou daqueles olhos estralados-efeito-especial do próprio cantor? E como encarar aquela letra boboca com a sobreposição dos versos de “O Corvo”? A declamação do poema endossa apenas o pretenso clima de terror da canção e elimina o efeito do texto original, o qual contrapõe a atmosfera de angústia criada pela “ave agourenta” à doçura da Leonora agora para sempre ausente.
E o que se pode dizer de um clipe ou de uma letra como “Like a Virgin”, “Material Girl” ou “La Isla Bonita” na voz de Madonna? Ou ainda, para nos demorarmos um pouco mais no Caribe, das canções e dos filmes de Elvis Presley, como “O Seresteiro de Acapulco”? Ou, para sermos mais atuais, do visual da Lady Gaga, essa pobre menina que carrega todo o brechó para o palco? São letras, arranjos, clipes e imagens confirmadores de clichês e tão falsos como a fotografia sacada por um turista japonês que se demora junto à PIETÁ apenas o tempo da própria foto.
Para não ficarmos apenas nas expressões musicais e percebermos como esse falseamento vai minando tanto o espaço público como o privado, consideremos a arquitetura (outra vez a imitação estadunidense) que tomou conta das cidades de pequeno e grande porte no Brasil. O que dizer das casas e prédios (sim, as coberturas reproduzem o estilo das casas) em que se misturam motivos em forma de arcos e polígonos com telhados arrematados em cones ou pirâmides? Não parecem o castelo da bruxa dos filmes de Walt Disney? Imagino o que Suassuna devia pensar quando passava pela praia da Boa Viagem e via aquele prédio de duas torres com um castelo no jardim…
Esse gosto médio é ruim porque não é autêntico, não reflete uma escolha das pessoas que moram em tais prédios, ouvem essas músicas ou “curtem” esses clipes. Elas os “escolheram” como mero reflexo de uma domesticação decorrente de algum tipo de propaganda, como a de que tal prédio é bonito (visando o potencial econômico do possível comprador), aquela música é boa, aquele clipe é ousado, e assim por diante. Na verdade, tais objetos nunca são bons nem ousados, são apenas uma redução pasteurizada (seja a forma arquitetônica, a letra e o arranjo da música, ou o conteúdo e a linguagem do filme) que nivela por baixo padronizando o gosto e impedindo o desenvolvimento de uma consciência crítica frente ao mundo. Em suma, uma forma de ideologia.



É em função dessa realidade que temos que reconhecer a grandeza do pensamento de Suassuna, mesmo que às vezes discordemos de sua radicalidade. Quando olhamos para a história do Brasil e as riquíssimas elaborações culturais construídas ao longo desses cinco séculos, é fácil reconhecer a riqueza da cultura nordestina. Não que as outras regiões do país não tenham contribuído para essa riqueza. O Acre nos deu João Donato, o Rio Grande do Sul a Elis Regina, São Paulo a Hilda Hilst, o Rio o Machado de Assis… Mas o conjunto das manifestações culturais nordestinas tem uma pulsação sem páreo nas outras regiões do Brasil.
Paulo Leminski debruçou-se certa vez sobre essa questão. Paranaense sem ser bairrista, no seu melhor estilo provocativo, ele cutucou com vara curta a afirmação tão disseminada (até hoje) de que Curitiba é uma referência cultural de gosto artístico no país. “E se Curitiba desaparecesse agora do mapa, que falta faria ao Brasil em termos culturais?” alfinetou. E concluiu categórico: “Neca. Nenhuma”. E aí ele mostrava que a cidade, refletindo o padrão econômico de uma classe predominantemente burguesa sem os extremos de miséria e riqueza de outras capitais brasileiras, era apenas uma consumidora e não uma produtora de cultura. Por isso não faria falta ao país.
Prosseguindo sua análise, Leminski volta-se então para o Nordeste. Lá, lembrava ele, durante o dia o negro ia para o eito, moía a cana, socava pilão, respondia por seu nome de branco e adorava a Virgem e o Menino Jesus. Mas à noite, entre as paredes da senzala, voltava-se para os seus orixás e fazia batucada. Sua cultura, juntamente com os elementos populares da tradição ibérica, permanecia viva. E foi isso que permitiu a riqueza e a reinvenção da cultura nordestina. Enquanto isso, o sul ficou preso à mentalidade do imigrante (alemão, italiano, polonês, ucraniano), preocupados apenas com o trabalho, não interessados em “perder tempo com arte”, com os dias religiosamente ocupados com tarefas, como indicam “as toalhinhas bordadas” pelas prestimosas donas de casa.
Na cultura popular está a força que nunca seca, expressão que nomeia um disco homônimo de Maria Bethânia, outro baluarte da arte brasileira e que sempre teve atitudes muito afinadas com as ideias de Suassuna, promovendo a aproximação das artes em discos em que mistura elementos musicais, teatrais e poéticos (DRAMA TERCEIRO ATO, IMITAÇÃO DA VIDA, O MAR DE SOPHIA). Por ocasião do lançamento de um de seus trabalhos mais recentes, OÁSIS DE BETHÂNIA, ela confessou: “Em meus momentos de dificuldade, volto-me para minha gente, para as cidades pequeninas do interior nordestino onde encontro uma autenticidade que não acho em outros lugares “.
José Saramago, por sua vez, numa entrevista em que lhe perguntaram se ele vislumbrava alguma saída para a humanidade, respondeu: “Se haverá alguma, ela virá da África”. A África e o sertão nordestino, espaços onde ainda se preserva (apesar das parabólicas e das antenas de celular) algo de autêntico, de menos pasteurizado, oásis onde a água ainda mina…
A afirmação do caráter universal da cultura popular se traduz num projeto de natureza simultaneamente ética e estética na obra de Ariano: “O mundo é um pasto incendiado e a função da arte é salvá-lo do incêndio e deixar alguma coisa de permanente e belo, que escape das chamas e das cinzas”. Esse universalismo, porém, nunca ignorou a realidade social brasileira e a necessidade do papel do escritor dentro dela: “(…) Machado de Assis dizia que existiam dois países dentro do Brasil, o país oficial e o país real. O país real seria bom, revelaria os melhores instintos, mas o Brasil oficial não passaria de algo caricato, burlesco. Talvez ele tenha exagerado um pouco. O Brasil oficial tem alguma coisa que presta; há pessoas dentro dele que têm consciência dessa dilaceração terrível que o país vive. 

" Ariano Suassuna foi superior a seu tempo por muitas razões, dentre tantas destaco o amor pela cultura popular e por ter aproximado a arte e a literatura do povo, no sentido mais inclusivo que se possa dar. Esse povo que ele gostava de estar sempre ao lado, aprendendo e lhe devolvendo com palavras que se eternizarão. O mestre será sempre " madeira de lei que cupim não rói ".
Assim, damos adeus à esta figura nordestina ímpar...  "Adeus Seu moço"!

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